domingo, 5 de fevereiro de 2012

O menino e a Rainha da Cachoeira





Eu morava em Delfim Moreira, na cidade, e minha irmã e madrinha na Fazenda Alegria das fábricas Peixe, onde meu cunhado-padrinho era o administrador. Aos domingos, pela manhã, subia o morro do Taboão rumo à casa de meus padrinhos, onde brincava com meus sobrinhos que eram poucos mais jovens do que eu. Muitas vezes ia de bicicleta Phillips, toda equipada, farol, farolete, retrovisores ornados com fitas coloridas. Quase toda a subida era feita a pé,empurrando a magrela, mas na volta, era uma delícia, não se fazia força, era deixar rodar, morro abaixo,fazendo curvas em velocidade. Certa vez ao fazer uma curva dei de encontro com homens que voltavam da cidade, alguns embriagados, andando no meio da estrada. Não deu outra, atropelei o mais alto e creio que mais bêbado, enfiando a bicicleta no vão das pernas do homem e jogando-o ao chão. Cai por cima dele e rolamos na poeira vermelha. O homem não teve tempo de fazer nada, pois enquanto ele se levantava, capengando por causa da bebida,(ou do atropelamento, sei lá!), eu já ia longe montado numa bicicleta avariada. Nem ouvi direito seus xingos, tanta era a pressa e o medo. Dessa estrada se avista uma cachoeira enorme, alta, volumosa, que é a atração dos jovens e visitantes. Lá do alto ela deixava cair, escorregando pelas pedras uma espuma branca e leitosa como o leite tirado da vaquinha Mimosa, que se espatifava nas pedras de sua base e formava uma lagoa borbulhante. Os adultos advertiam sobre o perigo dessa lagoa, que era profunda, formando um pilão que moía tudo que nele caia. Não se podia nadar nas redondezas desse pilão e nem tentar escalar a cachoeira. Eu respeitava a advertência e acima de tudo tinha medo, muito medo, pois Zé Candido, o dono daquela venda na curva da estrada, me contava histórias escabrosas. Quase toda noite, Zé Candido saia de sua vendinha e ia para a cidade para contar histórias, sentado no banco da Pharmacia N.S. da Soledade, de propriedade do papai. Seu repertorio era vasto e prendia meu interesse a ponto de esquecer a fome, o cansaço e as horas. Era uma delícia ouvi-lo em seu linguajar caboclo, narrar histórias de aventuras e assombrações e tirar de tudo uma lição de moral. Ele contou que existia, no fundo do pilão da cachoeira uma mina de ouro que era guardado por sua deusa e dona, e nas noites de lua cheia, à meia noite, em ponto, antes de terminar de bater as doze pancadas, as águas se congelavam, ficavam parada, não caiam das pedras, e nenhum som era ouvido, nem o barulho das águas e nem o dos bichos do mato. Nessa hora a deusa aparecia e pintava de dourado o lugar que tinha ouro. Mas ninguém podia olhar senão ficava enfeitiçado e ela levava para o seu reino como escravo. Muitas daquelas pedras que circundavam a lagoa eram pessoas que foram enfeitiçadas. Para não se deixar enfeitiçar só olhando por meio de um espelho, olhar indireto, sem olhar diretamente a deusa. Foi assim que alguns bandeirantes encontraram ouro, como aconteceu com Miguel Garcia. Certa vez eu fiquei até mais tarde num dos bailes que o seu Juca Rocha dava em sua casa lá na Peixe, tentando ver e falar com sua filha que eu queria namorar.O certo é que desci, devagar, emburrado por não ter falado com a menina e nem notei que as horas estavam avançadas. Nem era meia noite ainda, por muito e muito eram dez e meia, mas minha imaginação me fez ver o perigo da meia noite, ao ver a brancura da cachoeira. A lua branca brincava de espelho, redondo, num céu frio cheio de estrelas e iluminava os moldes dos pés e pneus na poeira fina da estrada. Eu não tinha relógio, mas tinha medo, eu estava com frio e tinha medo. Qualquer coisa que eu tivesse, o medo era muito maior. Esse medo me fez ver a deusa do ouro, pairando em cima das águas e soltando faíscas das mãos. Não queria olhar, mas desejava ver o que ia acontecer, não por causa do ouro, mas para saber como era essa tal deusa. O coração pulava mais do que cabrito,mais do que quando eu via a Ivete, e arrisquei uma olhada. Umazinha, rápida, não faria mal. A tal deusa nem iria perceber. E então arrisquei, olhei, de soslaio, olhar de medo e de curiosidade, olhei..... e perdi a direção da bicicleta. Fui de encontro ao barranco. Cai estatelado e uma turma de pássaros noturnos, sentindo-se ameaçados, bateu em retirada, fazendo alvoroço. Do chão vi a lua zombeteira, rir de minha idiotice. Cheguei em casa, sujo, amarrotado, empurrando a bicicleta e jurando que tinha sido derrubado pela deusa do ouro....




domingo, 25 de dezembro de 2011

Assim vai ser, e assim será



Não consigo entender o mecanismo das emoções, porque vem, para que vem e o que elas são realmente. Só sei que posso senti-las, algumas calmas, serenas, como a brisa que empurra o dia para traz dos montes, outras são violentas, amedrontadoras como a tempestade de raios e trovões. São tatuagens que carrego visíveis em meu corpo e na alma, exposta nos olhos e nos lábios. No fundo do baú, num escuro que presumo que nunca será alcançado, escondo mágoas e maldades, e tranco essas emoções com medo de fantasmas. Dá vontade de passar uma esponja e apagar certos acontecimentos, ou então fechar os olhos e mentir que foi sonhando, sonhando um pesadelo.

Todas as vezes que vou à Chácara do Ipe volta a minha memória o acidente de meus familiares, carregado com a mesma emoção do dia do acontecido. Não importa as orações que tenho feito ou as conversas em torno da mesa da cozinha, não importa saber que eles estão salvos, se restabelecendo com segurança, não importa entender que Deus agiu de forma extraordinária, fazendo o milagre da Vida. A emoção não acredita em racionalização e irrompe enérgica como o tigre que sai da toca e salta sobre a vítima. Como novo Adamastor com “ rosto carregado, a barba esquálida, os olhos encovados e a postura medonha e má, a boca negra e os dentes amarelos”, com seus olhos vermelhos e, a fauce escancarada, arrasta consigo um turbilhão de recordações, que embaralham os sentidos. A cena é toda revivida, detalhe por detalhe, dor por dor. Sei que vou superar, com a benção de Deus, o sentido doloroso desse acontecimento e deixar que a memória, a recordação, flua calma como o dia depois da tempestade.Vai restar a lembrança do que houve, o registro da memória não se apaga, mas a emoção de dor e sofrimento desaparecerá. É como olhar para uma faca e saber que ela já me cortou, mas que agora eu a domino com mais precaução.

E Assim vai ser, e assim será