sábado, 31 de julho de 2010

A caixa preta

Eram todos muito unidos e tranqüilos formando uma família modelo, profundamente religiosa, participativa na comunidade sem perder as missas dominicais. Todo dia quando chegava do trabalho o pai reunia os filhos para que contassem as novidades e dissessem o que fizeram , narrando os acontecimentos da escola, da cidade e depois dava sua benção.

.A mãe cuidava da casa, das roupas, da alimentação e ainda tinha tempo livre para as obras sociais e socorrer os pobres.

Antes de ir dormir faziam uma oração conjunta agradecendo pelo dia e prometendo serem melhores. O lar respirava paz.

O demônio não conseguia quebrar a tranqüilidade e nem trazer desequilíbrio.

Até que um dia, por ciúme e por maldade, a diabólica criatura descobriu um meio para desestruturar essa família.

Apresentando-se como amigo ofereceu-lhes uma caixa preta, aparentemente inocente, que dizia estar cheia diversão e de conteúdo educacional. Com ela os filhos iriam aprender melhor, conhecer o mundo, viajar na História, e para a mãe teria receitas culinárias e eventos fashions.

A caixa foi ligada e todos ficaram maravilhados com seu conteúdo, havia histórias educativas, filmes e desenhos para as crianças, futebol para o papai, culinária para a mamãe e muitas diversões para todos. Tinha até Missa. Era só mudar de canal, de emissora. Glória a Deus! As coisas estavam mais convidativas, a vida ficou mais alegre, mais fácil até. Não precisava mais ir ao Estádio pois em casa existia mais conforto sentadinho no sofá, pipoca e refrigerante na mão. E os filmes...quanta coisa bonita....

E as novelas entraram na casa.........e aos poucos a vida foi mudando e eles foram copiando o modo de falar das novelas, torciam e tomavam partido pelos personagens e os confundiam com a vida real.O guarda roupa recebeu nova contribuição e o visual dos jovens mudava a cada novela.

As refeições eram tomadas as pressas ou saboreadas no sofá, de olhos vidrados na caixa preta. Nem se ia mais a Igreja, pois a Missa era assistida ali na própria casa entre conversas e andanças, nem se rezava para dormir e não tinham mais a benção diária do papai.

De repente ela se tornou importante e foi preciso tirar o imagem de Cristo que estava em cima da mesa para dar seu lugar a ela.

Com essas mudanças vieram os desencontros, os conceitos não éticos, a experiência da bebida e a discussão sobre sexo. Os pais combatiam as mudanças, mas os filhos se diziam atualizados com a vida.

A mudança nos costumes foi severa.

Já não se falava em Deus, mas conversava-se sobre artistas e novelas.

Já não se fazia refeição em comum, mas cada um pegava seu prato e ia para o sofá.

Já não se tinha a conversa e a benção do fim de tarde quando o pai chegava, pois as atenções estavam em torno da novela das seis.

A paz foi rompida....

Um certo dia, após uma violenta discussão com os filhos e de colocar a culpa na falta de pulso da mãe, o pai ouviu o matracar de um pássaro, bicudo e preto, na árvore do jardim.........

Era a gargalhada do diabo, contente, pois finalmente conseguira quebrar a tranqüilidade e o equilíbrio de uma família.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

A Mudança

Foi então que a conversa rolou. A mesa cheia de garrafas vazias e João reclamando que não sabia que tipo de cerveja estava tomando. Brahma? Antarctica? Tudo agora é igual. As fábricas se uniram e a gente não sabe mais o que está bebendo. Já não há mais prazer em beber. Eu, disse João, só bebo a minha marca preferida, mas quem me garante que o que está neste rótulo é a cerveja que eu gosto ? Quem garante que não é outra?

E eu me recordei de um caso verídico que deu muito o que falar.

Há muitos anos correu o boato de que o sul de Minas, região de Pouso Alegre, Santa Rita, Itajubá , Delfim Moreira e mais algumas cidades iria passar para o Estado de São Paulo.

A conversa na época era até fastidiosa, os comentários os mais diversos, uns aprovando, outros rejeitando. Houve até pessoas que ensaiaram uma pronúncia tipo paulista do interior, carregada em tês ( tt ) e em dês ( dd), tipo " o ttittio comprou um Fordde verdde".

Joaquim Tereza era um homem do interior. Lá dos grotões da Mantiqueira. Ele foi mais longe. Vendeu seu sítio no alto da serra. Bela morada de janelas azuis, com canteiros de flores misturadas com ervas medicinais, pomar cheio de frutas, muitos marmelos e pêssegos, água encachoeirada que fazia murmúrio a noite todinha acalentando o sono daquela gente simples e ingênua. Tudo foi vendido, até a égua alazã, companheira de caminhadas, cria da casa, dócil como um gatinho.

Dona Maria dispôs da população do galinheiro, as galinhas d´angola que sempre reclamavam que estavam fracas, o galo garnisé que provocava brigas com o galo índio e fugia correndo pelo campo afora, os patos achatados de gordos e os marrecos que davam alarme quando alguém se aproximava do sítio. Ela recolheu algumas flores, um pouco de terra para levar como lembrança. O céu azul e as nuvens que brincavam de carneirinhos foram recolhidos por seus olhos e guardados no coração. No coração há sempre lugar para a imagem do que a gente ama.

Tinham que partir, ir embora.

Os olhos que partiam levavam bem nítidas as imagens daquele rincão da Mantiqueira . O corpo partia, ia embora, mas a alma continuaria presa àquelas paragens onde viveu uma vida feliz. Foi alí que o casal criou seus 11 filhos.

Recordação a gente não mata. Recordação a gente alimenta para que ela cresça e se reproduza em muitas saudades.

Compadre Tonico ainda tentou demover seu Joaquim da idéia de mudança. Qual o quê... Nada abalou aquela decisão: homem que é homem não volta atrás, argumentou. Com dor no coração, com peso na alma, mas tinha que partir, ir embora, pois tudo aquilo iria passar para o Estado de São Paulo, e Dona Maria, a Nhãnhã, não se dava bem com o clima de São Paulo, e ele fazia qualquer coisa para ver sua velha com saúde.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A Carta

Deito-me escarrapachado, de costas, e espero.
O sono não vem. O teto está insensível, pálido, inexpressivo. Só a lâmpada, bem no meio, quebra a monotonia da cor. Mais nada. Nem um bichinho, uma formiguinha sequer.
Os olhos estão acesos, elétricos e se recusam a fechar. Pela janela o céu zomba de minha insônia. A lua pálida, sem graça. A mesma que na noite anterior eu cantei em serenata.

Será que ela ouviu a serenata? Voz e violão! Voz apaixonada, ardente, cheia de promessa e violão comparsa, amigo e companheiro. A lua ,bela, fértil de mistérios e companheira da sedução. A música saiu natural, cálida, da garganta sedenta de amor. Música de seresta para agasalhar coração e fazer bulício na janela amada. O frio da madrugada se tornou calor de vulcão quando a luz se acendeu por trás das janelas fechadas. Era ela que tinha ouvido o som de minha alma.. Tinha que ser ela. Só ela poderia entender a oferta da madrugada. A música era para ela, portanto só podia ser ela. Mil rouxinóis despertaram dentro do peito e a segunda música foi um vendaval de paixão, fluente, harmoniosa, cheia de cores. O violão bateu sonoridade e tremeu de alegria com o braço coberto pelo sereno da madrugada.

Ela não iria agüentar tanta sedução. Ela iria se mostrar, sorrir, agradecer e quem sabe atirar uma rosa. Uma simples rosa que seria guardada como totem do amor. Seria símbolo de felicidade mesmo quando suas pétalas secas estiverem entre as páginas de um diário. Sacramento de esperança, de amor.
A janela não era tão alta , mas não podia alcançá-la. Há se houvesse ali uma trepadeira como na janela de Julieta, eu seria o Romeu subindo por ela.
Mas ela não veio, nem nas outra músicas. A janela teimou em não se abrir.
O violão perdeu a voz. A garganta perdeu o som. A noite ficou feia, triste sem beleza. A lua se desfigurou e um vento gelado soprou a chama da esperança.
O violão ficou triste debaixo do braço, caminhando sem vontade pela rua esburacada de uma cidade cinza, tropeçando em animais vadios que dormiam nas calçadas. A vida morrera. Lá no alto a lua zombava da dor numa alegria de estrelas.
A mesma, hoje , espia pela janela, curiosa, para ver o que estou fazendo. Ela não sabe de banzo e não entende de solidão.
Uma lagartixa corre pelo teto em busca de algum alimento.
Um envelope queima a minha mão e aguça a curiosidade. Envelope com a caligrafia que eu conhecia. A carta era dela.
O quê estaria escrito ali dentro?
Possivelmente ela gostou da serenata e está me agradecendo. Palavras delicadas, carinhosas . Ela é muito carinhosa e sensível.
Seus olhos misturam as cores de verdes quando está excitada. Olhos profundos, meigos, alegres. Verdes, ora verde musgo, ora apenas verdes..... verde, muito verde.
Aqueles olhos verdes me fitavam através da carta que estava fechada em minhas mãos. Olhos que sabiam olhar além de todos os limites.
Fazia pouco tempo que eu morava nesta cidade. Tinha vindo de uma cidadezinha pacata e humilde em busca de trabalho e de estudo. O dia era lindo aquele em que cheguei na cidade. Dia de admirações! De surpresas. Era a primeira vez que eu saia de casa, era a primeira vez que ia morar numa cidade grande. Daí a admiração e a surpresa em tudo que encontrava. Quantas novidades. A cidade com suas colinas, jardins, rios e pontes era bela aos meus olhos curiosos. Um rio largo de águas grossas, diferente do ribeirão cheio de seixos da montanha onde nasci.
Numa das colinas estava a Igreja Matriz e na frente dela uma praça ajardinada e nessa praça uma fonte luminosa. A fonte me atraía de um modo especial, não só por ser novidade para mim, mas por causa dos movimentos que a água fazia, girando em pequenos jorros, com luzes que estavam sempre mudando de colorido. Todas as noites eu ia para a Praça e ficava horas encantado com os movimentos e cores que saiam da fonte.
Quando criança os meus pais se perderam de mim e eu fiquei a contemplar o carrossel do parque, com sua música, seus movimentos. Estava tão hipnotizado que nem percebi a chegada de meus pais. Agora a fonte era o meu carrossel onde a imaginação montava as linhas de água e abria as portas para um passado saudoso.
Foi aí, nessa praça que eu a vi em vestido de organdi, conversando com amigas, rindo não sei de quê. Cabelos longos, presos atrás deixavam em destaque o rosto harmonioso. Seus olhos buliçosos se encontram com os meus e eu percebi um sorriso no olhar e nos lábios e me consumi na imaginação de um encontro.
Senti desejo de estar com ela ter sua companhia, ter sua voz nos ouvidos, sorrir o mesmo sorriso, passear os olhos por seu rosto, demorar em seu corpo, sabê-la mulher. Tomava forma em mim um sentimento misterioso, difícil de explicar, Vontade de ficar contemplando, sem exigências que não fosse a presença e o riso. Não era um desejo era uma identificação.
De repente o encanto se quebrou como vidro estilhaçado. Um rapaz se aproximou delas, cumprimentou-as e saiu com ELA. Ela que que já era minha, na imaginação. Senti-me agredido, desmoralizado. Olhei para os lados e parece que todos tinham visto a vergonha de ser passado para trás. Transformei o rapaz em um ser horrível, repelente, feioso, nariz adunco, dedos em garra, como o ogro que vi ,num livro de histórias infantis, raptando uma princesa.

Descobri a residência e o nome dela e fiz meu caminho coincidir com a sua rua. Assim eu a via, ora na janela, ora no portão, outras vezes na calçada. E toda vez me saltava o coração e se ela olhava para o meu lado era para mim que estava olhando, se sorria era para mim o sorriso. Eu a bebia com os olhos, devorava-a com os desejos. Passei a freqüentar a mesma Igreja, e ao invés de orar ficava todo o tempo de olhos fixos nela.
Meus colegas e amigos tudo percebiam e me incentivavam. Ela estava gostando de mim, não havia dúvida. Eu percebia pelo seu modo de me olhar, pela maneira de sorrir.

Precisava tirar o ogro do caminho. Era ele quem atrapalhava a situação, todos diziam. Tinha que fazer alguma coisa que a emocionasse a tal ponto que ela despertaria da influência do ogro. Em minhas insônias eu me transformava em caçador de ogros dos tempos antigos, cavalo branco ricamente ajaezado, lança e espada brilhantes de tão limpas, elmo e penachos na cabeça. Lutava, derrotava, massacrava o bicho fedido, humilhando-o a beijar os meus pés, tornar-se escravo. De repente o ogro assumia o rosto daquele rapaz e eu o humilhava num prazer requintado de maldade e desforra.

Era necessário um plano de conquista e eu já o tinha formado, decorado por tanto o repassar para procurar as falhas. Meus amigos e colegas concordaram com a eficácia do plano.
Eu possuía uma bela voz e sabia tocar violão muito bem. Na minha terra freqüentava festinhas para poder cantar e tocar o meu violão, deixando embevecidas as meninas e furiosos os rapazes. Sabia modular a voz deixando-a cálida, sensual . Sabia tirar proveito desse dom. E como sabia. ..
Daí a idéia de uma serenata. Com a ajuda de amigos fiquei sabendo do gosto musical, do cantor predileto, de tudo que ela gostava na música.
De posse de todos esses ingredientes planejei a serenata. Conscientemente, ardilosamente. Ela não iria resistir. Ela iria sucumbir, pois sempre foi assim com as outras.
Agora estava eu alí com um envelope a me queimar as mãos.
Resolvi abri-lo, lentamente, saboreando o momento, antegozando o prazer.
O mundo sorria, o quarto tinha mais luz, o coração ardia no peito. Envelope aberto surge um papel rosa, perfumado. Perfume de esperança e de ansiedade. Nem as deusas do Olimpo possuíram tal perfume.

Letra delicada, caligrafia fina. Poucas palavras:

“ Querido Luiz.

Estamos com saudades de você. Faz tempo que não temos notícias e papai e mamãe estão preocupados. Suas notas no estudo estão péssimas e isto traz intranqüilidade para todos. Está aproximando a Semana Santa e esperamos com ansiedade a sua chegada. Mamãe como sempre vai prepara o seu prato predileto...... “



Foi só , então, que reparei no remetente : Marianinha, minha irmã.

O mundo explodiu numa explosão galática e meus olhos se fecharam de dor e de raiva.